Fonte: Coalizão Direitos na Rede
Falar sobre o tema das telecomunicações e sua intersecção com o acesso à Internet, algo tão fundamental no contexto da sociedade da informação, com intensa digitalização dos processos econômicos em que vivemos hoje, demanda não só o interesse pelo que a socióloga americana Susan L. Star chamou de assunto chato, mas também a habilidade de tradução própria de quem é proficiente em outro idioma. Mas isso não deve nos impedir de tratar das alterações pelas quais a regulação das telecomunicações tem passado nos últimos anos.
Se Aloysio Biondi abriu o livro de 1999 O Brasil Privatizado com a seguinte frase: “Aproveite a política de privatizações do governo brasileiro”; nós podemos repeti-la em 2021 mantendo sua essência. Aproveite a política de telecomunicações do governo brasileiro. Permeados de aberrações, os dois processos são semelhantes na medida em que foram feitos sem compromisso com o reconhecimento da vulnerabilidade dos cidadãos no novo cenário neoliberal, beneficiando de forma desequilibrada os agentes econômicos e comprometendo interesses estratégicos para o país.
Episódio recente e que não pode passar despercebido por ter relação direta com o acesso à Internet, foi a aprovação da Lei 13.879 em outubro de 2019, que alterou a Lei 9.472/1997, a Lei Geral das Telecomunicações (LGT), em aspectos determinantes para assegurar o acesso aos serviços de telecomunicações e à Internet como direitos universais garantidos a toda população brasileira. Antes dessa mudança legislativa, os serviços de telecomunicações de interesse coletivo e essenciais, como a telefonia fixa, eram prestados com base em parâmetros definidos pelas concessionárias, mas estavam sujeitos ao poder regulatório do Estado, como o Ministério das Comunicações (MCom) e Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), de modo a corrigir falhas de mercado e atender a demanda de localidades com déficit de infraestrutura, com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e habitadas por cidadãos de baixa renda. Dito de outra forma, a LGT dava concretude ao conceito de serviço universal: ou seja, que serviços públicos considerados essenciais para o cumprimento do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana estivessem acessíveis para todos os cidadãos, dos mais ricos aos mais miseráveis.
Para tal, a LGT de 1997 investiu o Poder Executivo de atribuições para que, identificando novos serviços essenciais e a necessidade de reposicionar políticas públicas, estendesse o regime universal para novos serviços que surgissem depois da edição da lei, como é o caso da banda larga. Entretanto, o novo modelo estabelecido com a Lei 13.879/2019 alterou esta lógica e flexibilizou o dever do Estado quanto a adotar medidas regulatórias impositivas para as empresas que atuam no setor no sentido de garantir o acesso aos serviços e infraestrutura de telecomunicações, em prejuízo do direito de serviço universal.
A nova lei instituiu também a possibilidade de que os contratos públicos de telefonia fixa firmados em 1998, com término estabelecido para dezembro de 2025, possam se encerrar antecipadamente, adaptando-se às concessões, que operam em regime público, para novas autorizações de exploração em regime privado de múltiplos serviços de telecomunicações prestados sem obrigações de universalização.
E o que isso tem a ver com a Internet?
A rigor, a regra para essa transição prevê que o valor econômico das concessões deve ser apurado e convertido em compromissos de investimentos pelas empresas em redes de suporte ao acesso à Internet em localidades e regiões indicadas pelo Poder Público e escolhidas pelas operadoras. Além disso, mais de 40% do tráfego de dados passa hoje pelas redes de par de cobre da telefonia fixa, sendo, portanto, uma infraestrutura extremamente importante para o acesso à Internet.
Isso significa que o processo de apuração do real valor econômico das concessões é fundamental para que a transição de concessões para autorizações se dê de forma equilibrada, com vistas a evitar que as concessionárias se apropriem ilegalmente de recursos de natureza pública associados aos contratos que estão em vigência desde 1998, que devem estar voltados para o atendimento do interesse público.
Trocando em miúdos, todo o acervo de bens vinculados às concessões durante o período de vigência desses contratos deve ser levado em conta, uma vez que se trata de bens de natureza pública, implantados no contexto de contratos administrativos e afetados à prestação dos serviços de telecomunicações. Estamos aqui falando dos bens ditos reversíveis, pois retornam ao Estado no fim do contrato, e que vão de cabos de telecomunicações, a edifícios, postes, dutos por onde passam as redes de par de cobre e todo tipo de infraestrutura.
Da mesma forma que as empresas estatais foram subvalorizadas antes de serem vendidas nos anos 1990, hoje a Anatel, que é a entidade responsável pela avaliação do valor das concessões, atua de forma a subvalorizar os bens reversíveis, colocando em risco o direito de a sociedade e o Estado brasileiro perderem investimentos bilionários, que devem ser revertidos na implantação de infraestrutura de redes de acesso à Internet. O próprio Tribunal de Contas da União (TCU) reconheceu que a Anatel não possui dados confiáveis a respeito dos bens reversíveis e que, durante a vigência das concessões, deixou de promover as medidas para viabilizar o equilíbrio econômico-financeiro das concessões em desfavor da União e da sociedade brasileira, beneficiando ilegalmente as operadoras.
Para piorar o quadro e aumentar o escândalo, o governo federal editou o Decreto 10.402 em junho de 2020, fazendo uma interpretação equivocada da lei que alterou a LGT. Com isso, permitiu que os contratos de autorização para a exploração das radiofrequências sejam prorrogados por tempo indeterminado, desrespeitando os princípios da licitação em prejuízo aos cofres públicos e retirando do Estado o poder de utilizar as frequências para reposicionar as políticas públicas de telecomunicações. Este aspecto tem sido questionado tanto pelo TCU, quanto pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), pois afeta a concorrência.
Tamanha falta de rigor no trato de recursos públicos relevantes para a democratização do acesso à Internet e para a inclusão digital levou entidades da Coalizão Direitos na Rede (CDR) a ajuizar em 2020 uma Ação Civil Pública contra a União Federal – que é a responsável pelas telecomunicações – e a Anatel, com o objetivo de garantir que a apuração do valor econômico das concessões ocorra com respeito a princípios orientadores da atuação da administração pública, como a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, bem como ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos públicos e que as radiofrequências – recursos públicos valiosos e escassos – recebam tratamento que respeite os princípios da licitação e o interesse público.
Atualmente, a CDR tem um pedido de liminar que agora se encontra em análise no TRF-1ª, pois não podemos aguardar o trâmite lento dos processos para proteger um patrimônio bilionário essencial para a universalização do acesso a Internet, em respeito à Constituição Federal, ao Código de Defesa do Consumidor e ao Marco Civil da Internet, que está em vias de se perder.
O isolamento social imposto por força da pandemia tem deixado evidente e incontestável o fosso digital injusto que acirra as desigualdades sociais, e termina por comprometer o exercício de direitos fundamentais, como o do livre acesso à informação, à educação, à comunicação e à liberdade de expressão, bem como para a utilização de outros serviços públicos hoje só acessíveis pela Internet — para os quais as infraestruturas de telecomunicações são imprescindíveis.
É legítimo que a sociedade espere do Poder Judiciário, em caráter de urgência, o controle social sobre os atos do Ministério das Comunicações e Anatel, de modo que se garantam que preciosos recursos públicos revertam em favor de políticas públicas de acesso à Internet, que desempenha um papel primordial para interesses estratégicos do país, na medida em que contribui fortemente para o desenvolvimento cultural, social e econômico do país.