Apresentação por Laura Tresca, Percival Henriques -- Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)
O debate global sobre o acesso à Internet por parte da população mais exposta à vulnerabilidade social e pelos moradores de regiões remotas é uma questão premente para o avanço da inclusão digital. Há, nesse campo de estudo, dois aspectos estruturais. O primeiro deles é a conectividade à Internet. Cerca de quatro bilhões de pessoas seguem sem acesso à Internet em todo mundo – inclusive aproximadamente um bilhão não tem sequer acesso a serviços básicos de telefonia.
O segundo aspecto estrutural refere-se à apropriação da Internet pelos grupos isolados e vulnerabilizados. Trata-se das capacidades de compreensão e discernimento que auxiliam o bem viver. Sem essas capacidades, pessoas que vivem em áreas rurais e/ou que são economicamente desfavorecidas podem não usufruir dos benefícios do acesso à Internet.
Em lugar de empoderar e oferecer acesso a oportunidades, o acesso e o uso da Internet podem, nesse caso, estar associados à ampliação de desigualdades sociais e à ameaça a culturas locais. Os modelos de políticas públicas tradicionais para levar acesso à Internet, até o momento, não conseguiram cumprir integralmente com o propósito de universalização.
Dados da pesquisa TIC Domicílios, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), expõem uma diferença significativa no acesso em área urbanas e rurais, o que sugere a prevalência de um modelo pautado na livre-iniciativa como solução para a infoexclusão no país. Enquanto regiões economicamente mais atrativas são privilegiadas na oferta de acesso, regiões com baixa densidade populacional ou com predomínio de populações de baixa renda ficam desatendidas. O avanço da digitalização em todo o mundo – impulsionado pelo enfrentamento de uma crise sanitária mundial, como a pandemia COVID-19 – expôs a centralidade das tecnologias de informação e comunicação (TIC) na vida das pessoas.
Muitos dos serviços essenciais, em especial aqueles relacionados à educação e à saúde, passaram a ser prestados somente por meio da Internet, aumentando ainda mais a importância da rede para a sociedade. Em muitos casos, tornaram-se serviços digitais essenciais, devendo ser assegurados para toda a população. Em vista desse contexto, é imprescindível criar abordagens que permitam às populações excluídas do acesso à Internet 18resolver os próprios desafios de conectividade, bem como estruturar suas redes de forma a se apropriarem desse espaço e usufruírem das oportunidades e dos benefícios que a Internet pode oferecer.
Tais abordagens incluem alternativas para modelos restritivos de conectividade baseados em coleta massiva de dados. É possível fomentar políticas que apoiem modelos de implementação capazes de ouvir a população atendida, bem como aptos a construir o projeto em conjunto com a comunidade. Este é o cerne das redes comunitárias de Internet.
Os seus objetivos são:
- levar o acesso à Internet a locais com pouca oferta de infraestrutura e serviços a regiões onde modelos exclusivamente comerciais não se sustentam;
- garantir tratamento não discriminatório do tráfego e da diversidade de dados na primeira milha;
- capacitar indivíduos e comunidades, permitindo que desempenhem um papel ativo como proprietários da infraestrutura local de Internet e comunicação; e, portanto,
- promover oportunidades mais equitativas para a sociedade da informação.
As redes comunitárias de Internet constituem-se majoritariamente por comunidades tradicionais, agrupamentos rurais e comunidades quilombolas e são iniciativas capazes de promover a inclusão digital em áreas mais afastadas ou desatendidas, além de poderem desempenhar papel importante no avanço da apropriação da tecnologia.
Ao proverem acesso à Internet, as redes comunitárias “são estruturadas para serem abertas, gratuitas e respeitar a neutralidade da rede”[1]. Tais valores corroboram os próprios Princípios para a Governança e Uso da Internet do CGI.br, como os de universalidade, diversidade, neutralidade e governança democrática da rede, que apoiam ações e decisões para o uso e desenvolvimento da rede no Brasil.
Diante da relevância das redes comunitárias de Internet, o CGI.br iniciou, em 2021, um importante trabalho de investigação, buscando compreender os seus modos de operação e os seus efeitos nos territórios, bem como identificar maneiras de fomentar a sua sustentabilidade. O levantamento apresentado nesta edição é relevante não somente para identificar o potencial das redes comunitárias no Brasil, mas também para contribuir com o debate internacional em andamento sobre o acesso significativo à Internet a partir das realidades locais.
Além disso, cabe destacar que esse é um esforço inédito de pesquisa sobre redes comunitárias de Internet no Brasil a partir de entrevistas com responsáveis por sua implantação no nível local. Esta inciativa se baseia no compromisso do CGI.br com a sociedade ao apoiar projetos voltados aos desafios para a ampliação do acesso à rede, incluindo o papel da Internet no cenário de combate ao novo coronavírus e na proteção de direitos dos cidadãos.
O CGI.br, promovendo o desenvolvimento da Internet no Brasil nos últimos 25 anos, também reitera sua vocação para a geração de conhecimento de ponta e sua transmissão, vislumbrando atuar, cada vez mais, na capacitação, formação e certificação de pessoas. Assim, espera-se contribuir para o fortalecimento da Governança da Internet multissetorial e multidsiciplinar, capaz de lidar com os desafios técnicos do uso da rede, bem como com os econômicos, políticos e culturais que crescem exponencialmente com o avanço da Internet na sociedade. E assim, estimular e promover a apropriação da tecnologia por parte da população, em especial os jovens e populações tradicionais.
É tempo de olhar para o local para pensar o global.
[1] Internet Governance Forum. (2017). Outcome Document on Community Connectivity (p. 2)