Sem dúvida o Marco Civil da Internet foi uma relevante conquista, mas não atende a todos os requisitos para ordenar as políticas digitais no país. O Plano Nacional de Banda Larga (PNBL), o Programa Banda Larga nas Escolas (PBLE), Cidades Digitais, Telecentros.BR, CRCs, dentre tantas outras iniciativas, foram programas de governo com quase nenhum arcabouço legal que lhes garantam continuidade, sustentabilidade e governança participativa.
O resultado deste cenário é a execução desconectada de políticas e entraves para sua continuidade por conta da falta de interesse político e pensamento estratégico da gestão pública quanto aos benefícios que estas ações trariam ao país.
É possível reverter esta situação? Acredito que sim e, ao que parece, o principal obstáculo é a vontade política e o reconhecimento de que o mercado, sozinho, não irá sanar o abismo do dividendo digital. Estatísticas e pesquisas já mostram esta realidade, no caso então, o que falta mais para de fato organizarmos as políticas digitais no país e avançarmos nos direitos ao acesso a estes?
Ativistas e entidades da sociedade civil que compõem vários movimentos que tocam as políticas digitais já vêm propondo há quase 10 anos recomendações para estas políticas. As campanhas "Banda larga é um direito seu", "Marco civil já" e movimentos como a "Coalizão direitos na rede", apresentaram propostas para tais políticas.
Dentre alguns pontos principais temos as políticas de telecomunicações e TICs, que em resumo têm ligações diretas com as formas como são tratadas a infraestrutura de telecomunicações no país e a universalização do acesso à banda larga como direito, garantindo princípios como neutralidade da rede, privacidade, liberdade de expressão, qualidade e modicidade tarifária.
Vivemos momentos turbulentos dentro de uma crise institucional grave, que resulta em crise política e econômica que perturbam os fluxos mais progressistas para conquistas dos direitos. Na verdade, estamos vendo um desmonte de vários direitos e dentre eles as políticas de telecomunicações e Tecnologias da informação e da Comunicação.
Logo, a proposta deste artigo é provocar a sociedade e também o poder público, principalmente nas instâncias municipais, para que se atente para as políticas digitais e seu devido ordenamento, já que o acesso é dado sempre na última milha, que está dentro dos municípios. É claro que as macro políticas devem progredir também; porém, uma pressão de baixo para cima pode ser uma das respostas neste momento.
As justificativas não são poucas, ou seja, incluir social e digitalmente os munícipes é garantia de melhoria da qualidade de vida, da economia, dos serviços públicos, da economicidade e estreitamento da distância entre o cidadão e a gestão pública. Enfim, não são poucos os benefícios; logo, abrir este debate a partir dos municípios aparenta ser um bom ponto de partida.
Neste contexto das políticas digitais vale ressaltar alguns pontos que são:
1) É preciso ordenar as políticas digitais em âmbito municipal, pois é mais fácil e gera um fator progressivo para ordenar nas outras instâncias. Isso é possível justamente porque não há ordenamento destas políticas nos níveis superiores de governo. Tal ordenamento deve prever pelo menos sustentabilidade e governança participativa, via fundo e conselho locais.
2) Para todos os investimentos em infraestrutura de Telecom e TICs, a proposta é que esta seja tratada como bem comum, logo, havendo regras de compartilhamento para atendimento das demandas de todos os setores da sociedade com e sem fins lucrativos.
3) O processo de governança participativa advém da formação de conselho local com participação proporcional e equilibrada entre poder público, academia, empresas e sociedade civil não empresarial. A sustentabilidade é gerada pela criação de fundos e as captações conforme legislação específica.
Com estes pontos sanados, o processo decorre de forma ordenada e cria ambiente legal estável, permitindo que as políticas digitais conversem com outras políticas transversais e se consiga desenhar um plano estratégico coerente para a execução das ações. Neste contexto, inclusive, vale ressaltar que esta infraestrutura física, que podemos incluir na política púbica de cidades digitais, tem utilidade para todos os setores da sociedade e para todas as instâncias de governos, logo, aparenta ser altamente sustentável no ponto de vista da quantidade de stakeholders envolvidos.
Como dito anteriormente, vivemos tempos turbulentos e neste momento finda o processo de consulta pública dos decretos que minimamente apontam as diretrizes e objetivos para as políticas de Telecom e TICs no país. Não existe contradição no que foi dito até agora, pois decretos não têm força de lei, logo, só tentam ordenar as políticas de governo e não de Estado. As leis existentes por sua vez não são suficientes para atender os desafios modernos para ampliação e universalização do acesso a estes serviços, logo, eis aqui uma trincheira para ocupar e avançar na criação dos marcos legais que abarquem e ordenem as políticas digitais no país.
A referida consulta pública, aberta pelo Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), irá revogar 3 decretos. São eles:
1) PNBL – Trata da política nacional de banda larga e define alguns papéis de relevância para a Telebras e para o Ministério das Comunicações.
2) Políticas de telecomunicações – determinam as diretrizes do governo para a execução destas políticas, colocando objetivos e determinando o papel dos entes de governo ligados a este setor.
3) Brasil Inteligente – Institui um programa de governo para ampliação do acesso para criar as cidades inteligentes e para o desenvolvimento de serviços eletrônicos para a sociedade.
Ao criar a consulta pública, o governo abriu brecha para ampliar o debate sobre como as políticas digitais estão sendo executadas e permite incluirmos as sugestões necessárias para induzir minimamente os municípios a criarem seus marcos legais, mesmo que as instâncias superiores ainda não existam. Ao mesmo tempo, abre oportunidade para direcionamento de dotações públicas orçamentárias para execução das políticas digitais, mantendo o foco sempre no interesse público e na ampliação dos direitos e não o fomento travestido em infraestrutura privada com recursos públicos.
Os pontos principais que sugerimos na consulta pública são:
1) Reforçar o princípio de universalização do acesso das políticas digitais;
2) Proteção dos direitos dos usuários;
3) Expansão e criação de infraestrutura de Telecom, principalmente fibra óptica nas áreas mais distantes e menos atendidas no país;
4) Implantação da política de cidades digitais inteligentes através de marcos legais e regulatórios adequados;
5) Criação de marcos regulatórios assimétricos que permitam a atores sem fins lucrativos e estatais proverem acesso aos serviços de Telecom e TICs;
6) Mecanismos legais e regulatórios para obrigatoriedade de compartilhamento não discriminatório de infraestrutura de Telecom e TICs;
7) Fomento a fundo perdido para ações sem fins de lucro ligadas as políticas digitais e criação de infraestrutura de Telecom e TICs com gestão comunitária e com obrigações de compartilhamento;
8) Transparência e participação social sobre os processos decisórios para aplicação dos recursos nas políticas de Telecom e TICs;
9) Uso de infraestrutura pública, sem ônus, para fins de atendimento às políticas digitais e ações sem fins lucrativos;
10) Papel relevante da Telebrás no fomento de infraestrutura de Telecom e TICs para atendimento das políticas digitais e ações sem fins lucrativos, garantindo a esta viabilidade econômica e benefícios fiscais;
Ao longo do tempo, tanto nas proposições dos movimentos sociais junto ao poder público como nas consultas públicas e outros meios de participação, foram sempre negadas tais sugestões para as políticas digitais no país. Isso se deve ao fato de que existe um favoritismo ou uma visão estreita de que o Estado não deve intervir nas políticas de Telecom e TICs a ponto de adentrar nos interesses de mercado; ou seja, trata-se de uma submissão velada do Estado em um setor estratégico e aparenta até mesmo um conluio para que seja somente o mercado a reinar sobre estas infraestruturas e serviços. Nada contra o mercado, mas, quando um serviço vira essencial, quiçá fundamental e os níveis de exclusão não diminuem, seja no contexto de acesso, mas, também em termos de discriminação econômica, não há como ficar calado.
Dito isso, fiquemos atentos aos desdobramentos, se interem mais das informações aqui apontadas. Estamos à disposição para dirimir as dúvidas e ajudar a compreender melhor para que a atuação do cidadão fique cada vez mais qualificada sobre estas políticas que tratam de nossos direitos ao acesso à informação, liberdade de expressão, privacidade e tantos outros que nos são tão caros.
Links relacionados:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9472.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8776.ht...
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7175.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4733.htm
http://www.cgee.org.br/ConsultaPublicaTelecom/