A APC - Association for progressive communications está publicando, em seu canal de notícias, uma série de entrevistas com especialistas sobre o tema do espectro. Para a segunda entrevista da série sobre o espectro realizada pela APCNews, eles tiveram a oportunidade de falar com Peter Bloom, coordenador geral e fundador da Rhizomatica, organização não governamental baseada no México e membro da APC.
Peter fundou a Rhizomatica em 2009 com a missão de aumentar o acesso às telecomunicações ajudando comunidades a construir, apropriar-se e gerenciar suas próprias infraestruturas de comunicação de código aberto e baixo custo. Desde então, a organização tem ajudado na implantação de cooperativas de comunicação locais, iniciativas desenvolvidas para reduzir o custo do backhaul e tem batalhado, com êxito, por marcos regulatórios mais justos, que permitam o compartilhamento do espectro e o desenvolvimento de redes comunitárias. Em reconhecimento a seu amplo trabalho em telecomunicações, desenvolvimento de comunidades e direitos humanos, Peter ganhou o título do MIT “Technology Review Innovator com menos de 35 anos” e um do “Foreign Policy’s 100 Leading Global Thinkers” em 2015.
Durante uma conversa sobre vários temas com a APCNews, Peter destacou as tendências emergentes na regulação do espectro, a importância de empoderar comunidades para gerirem suas próprias infraestruturas de telecomunicações e de participar em debates sobre políticas públicas, bem como a necessidade de se ver o espectro como “um potencial para comunicar sobre as ondas do ar”, mais do que um bem a ser apropriado.
APCNews: Qual papel o espectro desempenha no trabalho da Rhizomatica?
Peter Bloom: Fundamental. Nós acreditamos que nossa principal contribuição é na verdade nessa área. Além de ajudar a construir redes (que geralmente requerem o uso do espectro), nós gastamos boa parte do nosso tempo tentando tornar mais fácil o acesso ao espectro por comunidades e pelas pessoas em geral. Nós defendemos e fazemos lobby em fóruns internacionais e da América Latina, como a UIT, e também trabalhamos diretamente com governos e reguladores para ajudar a mudar corações e mentes sobre como administrar o espectro. Para nós, o ativismo em torno do espectro é sobre conscientizar bem como fazer propostas concretas para que possamos desafiar o status quo e, mais cedo ou mais tarde, criarmos acesso igualitário a esse recurso público. A regulação do espectro é um espaço com outras poucas organizações ativistas devido à complexidade e à opacidade dessa questão. Também é uma área em que corporações imensas e transnacionais dominam a forma como as leis e as regulações são formuladas e concretizadas. Então é preciso ser uma voz de oposição oferecendo alternativas, e sentimos que somos parte dessa voz.
APCNews: A missão da Rhizomatica é apoiar comunidades a criarem e gerirem sua própria infraestrutura de comunicação. Esse propósito envolve a educação sobre questões relacionadas ao espectro? Como a Rhizomatica trabalha para empoderar comunidades não só a gerirem suas próprias conexões mas também a participarem das discussões sobre regulação e políticas públicas?
PB: Nós certamente fazemos isso e, através do nosso trabalho, comunidades se envolveram diretamente no processo de advocacy sobre o espectro. No México, só para dar um exemplo, as comunidades que são parte do projeto tem governança direta e controle da organização, que, em troca, emprega advogados com a tarefa de desenvolver a visão dessas comunidades. Isso recentemente resultou em levarmos o governo à justiça em relação aos impostos que eles queriam cobrar do projeto relacionado ao nosso uso do espectro. Membros de comunidades indígenas foram à Cidade do México falar com um dos juízes para explicar nosso posicionamento e terminamos ganhando a causa.
APCNews: Você pode descrever os elementos chave do ambiente regulatório para o espectro no México e na região da América Latina?
PB: Essa é uma pergunta complicada já que cada país tem seu próprio marco regulatório. Realmente não há como falar da região como uma coisa só. No caso do México, com que estamos mais familiarizados, temos uma situação muito boa agora (depois de décadas de luta, especialmente por comunidades indígenas). Há algumas coisas importantes acontecendo no México em termos de regulação do espectro. A primeira é que comunidades e ONGs têm direito igualitário ao espectro e podem obter autorizações de radiodifusão e de telecomunicações sem discriminação e operar qualquer serviço que sejam técnica e economicamente capazes de fazer. A segunda é que todo ano o regulador cria um planejamento do espectro e deve atribuir espectro para detentores de licenças comunitárias de acordo com a necessidade, geralmente sem que elas tenham que pagar e sob a prerrogativa de que eles cobrirão áreas não plenamente atendidas. Portanto estamos pressionando por regulação similar em outras partes da região da América Latina e em outros lugares do mundo, principalmente na África.
APCNews: Quão importante é o espectro para facilitar projetos de conectividade de baixo custo e em zonas rurais na região de um modo geral?
PB: O espectro é importante já que ele facilita a transmissão de informação à distância sem o uso de cabos, que tende a ser mais caro. Isso é bastante útil para áreas remotas e rurais, como se pode imaginar. Como um colaborador nosso indígena gosta de dizer, o espectro nos permite falar e ouvir outros que estão longe como um sinal de fumaça, uma buzina ou como um grito num cânion.
APCNews: Quis são algumas das tendências, desafios e oportunidades que você vê pela frente no que diz respeito ao espectro?
PB: Há duas coisas que gostaria de destacar. A primeira é a necessidade de avançarmos em direção a uma regulação mais dinâmica do espectro. Ter mais espectro isento de licença, como Wi-fi, seria obviamente ótimo, mas essa é uma longa batalha em termos de regulação e harmonização de leis internacionais. Enquanto isso, podemos criar uma forma muito mais flexível e inclusiva de administrar o espectro. Portanto isso significa sair de um modelo de uso exclusivo para um que simplesmente garanta ou pelo menos limite a interferência. Isso, então, permite que muito mais pessoas usem o espectro e ainda evita que que loucuras aconteçam. Uma coisa em que estamos trabalhando é uma proposta para a região da América Latina em torno do uso secundário do espectro.
A segunda tendência, que é bastante problemática, é a apropriação massiva que vem acontecendo em relação ao 5G, ou o que é mais oficialmente chamado de IMT 2020 (“International Mobile Telecommunications 2020”, termo cunhado pela UIT para o conjunto de metas estabelecidas para o setor tendo como horizonte 2020). Do ponto de vista do espectro, a parte preocupante é justamente quanto dele está sendo requisitado. Quando o 4G foi harmozinado pela UIT, algumas centenas de megahertz (MHz) eram identificadas. Para o 5G, estamos falando de cerca de 17 mil MHz ou 17GHz - então de uma magnitude muito maior do que o 4G. Qual é o problema? Primeiro, há essencialmente zero participação dos cidadãos nisso. Todo o espectro utilizável para radiocomunicação é em torno de 300 GHz, então colocar de lado 17 GHz para um tipo de uso, por provavelmente um tipo de provedor de rede, não é qualquer coisa. Mas a maioria das pessoas, mesmo aquelas trabalhando com direitos digitais, não têm ideia de que isso esteja mesmo acontecendo e decisões definitvas têm sido tomadas enquanto conversamos e culminarão no começo de 2019.
APCNews: Um dos posts do blog da Rhizomatica aponta que a ideia de espectro é “socialmente construída” e que “deveria haver o direito ao espectro assim como existe o direito econômico e social à moradia e à educação”. Você pode elaborar sobre isso? Por que é importante ser crítico ao conceito de espectro? E como podemos começar a formatar o acesso ao espectro como um direito humano?
PB: Nós transformamos o espectro em uma coisa, quando na realidade ele é mesmo um potencial - um potencial de comunicação sobre as ondas. Ele foi transformado em uma coisa exatamente para se extrair valor dele e atribuir seu uso de maneira ordenada. Essas duas visões (coisa vs. potencial) conflitam quando as comunidades querem usar o espectro para se comunicar da maneira como acharem melhor. A maioria das regulações tratam o espectro como um recurso finito e, portanto, tenta encontrar formas de maximizar os benefícios desse recurso finito sob a prerrogativa de que quem paga por isso tem mais incentivo para usá-lo. Então o espectro acaba sendo vendido por partes, como se fosse um pedaço de terra com um título proprietário. Além de ser ineficiente, essa abordagem resulta em pessoas comuns e comunidades não podendo mesmo acessar o espectro de forma significativa porque é muito caro e as regras do jogo forçam você a comprar o acesso a grandes áreas. O espectro para serviços móveis como GSM e LTE é geralmente concedido em nível nacional. Isso significa que a pessoa que pagou pode usar parte do espectro que recebeu em qualquer lugar do país. O problema com isso é: o que acontece quando eles não usam o espectro em um determinado local (por exemplo, algum lugar sem cobertura)? Como outros podem utilizá-lo no lugar do concessionário? A resposta curta é: não podem. Isso nos leva ao que é mais importante: dinheiro para os cofres do estado ou a possibilidade de todos poderem se comunicar? Para nós, o direito à comunicação é mais importante, e portanto o espectro deveria ser tratado de forma que permitisse a mais pessoas se comunicarem. Isso não significa que o aparato regulatório deveria desaparecer e que ninguém deveria pagar por nada. Mas, ao contrário, significa que é preciso haver um equilíbrio entre essas duas abordagens. Ao contrário do que se pensa, o espectro existente é mais do que suficiente para ser utilizado, especialmente em zonas rurais. Em outras palavras, vamos nos certificar que podemos usá-lo para o que for necessário, onde for necessário.