Mike Jensen (*)
Muita gente pode perguntar: por que precisamos de novas tecnologias de conectividade na África? Será que WiFi, DSL e Internet móvel não bastam? Na verdade, ainda temos um longo caminho pela frente até conseguirmos fornecer acesso à Internet que seja confiável, barato e em qualquer lugar da África e de outros países em desenvolvimento. No nível domiciliar, a União Internacional das Telecomunicações (UIT) estima que a penetração da Internet chegue a 77% na Europa e a 7% na África. Com relação à banda larga, a exclusão segue padrões parecidos, mas as desigualdades são ainda mais acentuadas, pois menos de 10% da população mundial dispõe deste tipo de acesso. As velocidades médias da banda larga variam segundo um fator de mais de 40, indo desde 256 kbit/s até mais de 10 Mbit/s. As desigualdades no acesso são ainda mais visíveis quando se faz uma desagregação dos dados por grupos de menor renda, especialmente nos países em desenvolvimento – particularmente a população rural, as mulheres, os grupos culturalmente oprimidos, os habitantes de pequenas nações insulares e dos países menos desenvolvidos em geral.
As duas principais razões para essas desigualdades são a distribuição limitada em muitas áreas de infraestrutura de Internet básica (espinhas dorsais nacionais e internacionais e redes locais ou de última milha) e o elevado custo do acesso, o que coloca os serviços a preços que a população não pode pagar em regiões como a África – onde o preço de um plano de acesso por banda larga via computador com 1 GB/mês de volume de dados representa em média mais de 50% da renda nacional bruta per capita (cabe comparar esse número com o valor de 2% na Europa).1
Isso significa que sem Internet a preços razoáveis grande parte da população com baixos níveis de renda nos países em desenvolvimento não terá como participar plenamente da revolução digital, não terá como encontrar novas maneiras de ganhar a vida ou de fazer uso eficiente dos recursos disponíveis, de consultar materiais de ensino online, nem de manter contato regular com amigos, colegas e familiares.
Sem Internet plena, aqueles que se encontram nas áreas rurais ou mais isoladas (a maioria da população na África e em outras regiões em desenvolvimento) continuarão excluídos dos benefícios descritos acima. Particularmente as populações rurais ficam em desvantagem pois não podem usufruir da “morte da distância” que a Internet propicia, já que precisam gastar muito tempo e boa parte de sua já limitada renda para deslocar-se até os centros urbanos a fim de realizar as mais simples transações. Por toda a África escolas, pequenas empresas e pequenos órgãos governamentais, ONGs, bibliotecas, clínicas, faculdades e muitas instituições que se encontram fora dos grandes centros ainda não dispõem de acesso à Internet que seja confiável, a preços razoáveis e rápido.
Sem poder contar com esse acesso, as instituições e o público em geral não poderão usufruir dos serviços prestados através da Internet – à medida que passamos a depender cada vez mais da conectividade para realizar muitas atividades cotidianas, é preciso minimizar as interrupções desses serviços assegurando pelo menos duas conexões com a Internet que sejam fisicamente independentes.
Algumas formas inovadoras de uso do espectro para acesso sem fio (wireless) fixo, como a TVWS,2 pode ajudar a atingir essas metas, das seguintes formas:
1. Reduzindo os custos do acesso à Internet. Os prestadores de serviço de Internet que conseguem fazer uso inovador do espectro de radiofrequência podem ajudar a criar mais concorrência nos mercados para o acesso à Internet. Assim, exerce-se pressão sobre as concessionárias de serviços existentes, que aproveitam seu domínio do mercado para manter elevadas margens de lucro – ou práticas empresariais ineficientes. As operadoras de serviços móveis, em particular, tornaram-se as “concessionárias da vez”, operando frequentemente na forma de cartéis, mesmo havendo uma suposta concorrência. Tais práticas oligopolísticas não só mantêm os preços nas alturas como também limitam a neutralidade e a inovação da rede.
2. Fornecendo pleno acesso. As frequências mais baixas usadas pela TVWS podem ajudar a alcançar distâncias maiores do que os sistemas que usam frequências mais elevadas, que são menos econômicas. Além disso, uma maior pressão competitiva exercida pelos novos fornecedores de conexão wireless fixa também vai aumentar o incentivo para as operadoras realizarem mais investimentos nas áreas não atendidas.
3. Fornecendo acesso mais confiável. No mundo desenvolvido, a conectividade “permanente” seria propiciada por um DSL ou um serviço de TV a cabo, complementado por um serviço de banda larga móvel. Na África e outras regiões em desenvolvimento, uma solução wireless fixa como TVWS poderia ser complementada por serviços WiFi ou de banda larga móvel. Assim, a TVWS passa a ser um caminho físico alternativo para a Internet, garantindo a continuidade de serviços vitais no caso de uma interrupção do serviço em algum dos elos da rede.
Potencial para uso inovador do espectro
Com o crescente uso das tecnologias wireless em geral, o espectro de radiofrequência passou a ser uma parte vital do ecossistema da Internet. O uso da TVWS e outros usos dinâmicos do espectro são particularmente apropriados para os países em desenvolvimento – onde há bastante espectro de teledifusão não utilizado, as expectativas de bitrate são menores e há muita gente vivendo em áreas não atendidas pela infraestrutura existente. O crescimento explosivo do acesso móvel tem desviado a atenção da prestação de acesso fixo (que oferece velocidades mais altas e menores custos de assinatura); por conta disso, a infraestrutura fixa de última milha vem perdendo prioridade no âmbito das políticas públicas, e as práticas legislativa e regulatória do momento não têm tratado o problema de forma criativa.
As comunidades rurais são especialmente vulneráveis a uma má gestão do espectro, pois têm menor probabilidade de acesso a linhas fixas. Contudo, embora haja mais espectro disponível nas áreas rurais por causa da menor quantidade de usuários, isso não se traduziu em melhor acesso ao espectro. Os legisladores não têm noção de que as operadoras de serviços wireless precisam de espectro de baixo custo, o que é um fator chave, e falta-lhes também a capacidade de atualizar os planos para o espectro à medida que vão surgindo novas tecnologias; somam-se aqui as limitações de recursos para fiscalizar as regras do espectro.
Dentre os mais visíveis desses problemas há a demora em passar da TV analógica para a digital nas regiões em desenvolvimento, o que retarda a oferta das importantes faixas de 700-800 MHz 3 – particularmente adequadas para os serviços wireless de banda larga de alta velocidade. A alocação da faixa de 2,6 GHz é importante para a banda larga em áreas urbanas e também está sujeita a demora em muitos países. O uso de tecnologias dinâmicas de espectro compartilhado e não licenciado como a TVWS e WiFi poderia ter muito mais destaque para atender as necessidades imediatas de conectividade, sem precisar esperar pela transição analógico-digital, que já dá mostras de não acontecer mesmo em vários países desenvolvidos antes do prazo de 2015 proposto pela ITU.
O elevado custo das licenças de espectro é atualmente o maior empecilho para a implantação dos serviços wireless, o que por sua vez limita a implantação de serviços de Internet sem fio e aumenta os custos para o usuário final. Esses elevados preços do espectro estão ligados também à continuidade do domínio das operadoras móveis. Uma vez que pagaram milhões de dólares ao Estado por essas licenças, as operadoras móveis conseguem convencer os governos a limitar a entrada de sangue novo no mercado. Muitas operadoras móveis alegaram que as tarifas foram pagas para que apenas uma quantidade limitada de organizações pudessem atuar no mercado, e também com base no fato de que o tamanho do mercado era insuficiente para suportar mais operadoras. Esse argumento foi reforçado pelo fato de que toda e qualquer postura para gerir o espectro de forma a aumentar o acesso costuma ser desconsiderada pela maioria das entidades reguladoras e até mesmo pelos pequenos provedores de serviços de Internet (ISPs) locais.
Tem particular importância o fato de que o modelo de uso dinâmico do espectro também pode ser aplicado a outras frequências de forma a aumentar genericamente a eficiência do uso, e ainda ajudar a aliviar o fardo da gestão do espectro para as reguladoras. Os poucos ensaios de TVWS que foram realizados até o momento já demonstraram que boa parte das faixas de espectro alocadas não estão em uso, e isso coloca em questão toda a premissa da “escassez de espectro” na qual baseiam-se os atuais modelos de alocação. À medida que vão sendo conhecidas mais informações sobre o uso do espectro terrestre por parte dos países em desenvolvimento e de outras fontes além das reguladoras nacionais (em geral carentes de recursos), por exemplo, através de processos de crowdsourcing, o que se espera é que aumente a conscientização sobre o enorme potencial de recursos do espectro de radiofrequência. Nesse sentido, a TVWS é um ponto de entrada no cerne das questões de gestão do espectro em geral, e pode reunir uma gama de distintos interessados num trabalho conjunto em busca de soluções para o problema do acesso. Conforme destaca o histórico do suporte à TVWS nos EUA, onde as entidades civis pressionaram pelo uso desses espaços, a sociedade civil tem a importante função de chamar atenção para o uso dinâmico do espectro. Com uma agenda de neutralidade tecnológica, os grupos da sociedade civil não apresentam viés em torno de uma ou outra solução de acesso, e podem ser um parceiro confiável para ajudar a orientar na adoção da melhor matriz de tecnologias.
Como maximizar o impacto do uso inovador do espectro
Cabe observar que a tecnologia TVWS e outras de uso dinâmico do espectro fazem parte de um “ecossistema de conectividade” mais amplo, e elas não atingirão seu potencial pleno a menos que outras necessidades relativas ao ecossistema de acesso sejam atendidas ao mesmo tempo. Nos países em desenvolvimento, essas necessidades são muitas, mas as mais importantes são:
Poucas barreiras à entrada de novos provedores de Internet (licenciamento). Conforme observado acima, afora as faixas de espectro ISM/WiFi já existentes, os elevados custos de licenciamento já excluem de antemão os pequenos que possam querer entrar no mercado, e as operadoras móveis costumam opor resistência aos candidatos que surgem. Empecilho ainda maior em alguns países é o fato de que simplesmente não há novas licenças para operar serviços de Internet, o que deixa o mercado nas mãos das concessionárias (incumbents) e operadoras móveis já existentes.
Interconexão eficiente. Sem uma boa interconexão com as redes existentes, o nível de serviço que os pequenos provedores de espectro dinâmico poderão oferecer aos seus clientes não estará à altura dos serviços prestados pelas grandes operadoras. Esse serviço requer, no mínimo, uma eficiente comutação do tráfego local com outros provedores de Internet e Redes de Distribuição de Conteúdo (CDNs) que seja capaz de garantir a presença de Pontos de Troca de Tráfego (PTTs) bem administrados com a participação dos principais provedores de Internet. O ideal é que estejam aí incluídos mecanismos de interconexão com as operadoras de voz tradicionais, para a realização de chamadas de Voz sobre Protocolo de Internet (VoIP). Em alguns países, os serviços de voz e VoIP não costumam ser permitidos, exceto para uso pelas redes fixas e móveis das concessionárias.
Espinhas dorsais nacionais de fibra óptica. Sem uma boa infraestrutura nacional de fibra óptica, as áreas afastadas, que mais poderiam aproveitar a TVWS e outras tecnologias wireless não terão como se conectar a custos viáveis, nem com capacidade suficiente. É preciso que os governos incentivem mais investimentos nessa infraestrutura através de um estímulo à concorrência e também através do acesso a preço de custo ao cabeamento de fibra já existente, bem como facilitar os direitos de passagem nas redes de energia, transporte, água e infraestrutura sanitária. Para tanto, pode ser necessário adotar novas legislações que permitam o acesso de terceiros a essa infraestrutura e limitem os preços cobrados. Temos alguns bons exemplos: West African Power Pool (WAPP) – que administra as redes de energia elétrica de 14 países da África ocidental; rede de controle da distribuição de água na Tanzânia; espinha dorsal de fibra óptica do Plano Nacional de Banda Larga (PNBL/Telebras) no Brasil; rede pública de banda larga Infraco na África do Sul. Com isso, também é necessário implementar um regulamento para o compartilhamento de infraestrutura entre os provedores existentes, o que normalmente implica o provisionamento de dutos ou conduítes para a fibra óptica em novas redes de transporte ou energia, mas isso também se aplica aos dutos de água e esgoto nas áreas municipais e aos mastros das estações de rádio base das redes sem fio. Cerca de 80% dos custos de implantação de uma rede de fibra vão para as obras: escavações, colocação de dutos, obtenção de alvarás e direitos de passagem. É possível evitar esses custos quando se usa a infraestrutura das redes de energia, o que barateia bastante a implantação da fibra. Além disso, muitas redes de distribuição de eletricidade já contam com instalações de fibra (para o controle das subestações de distribuição de energia) e podem fornecer pares de fibra excedentes a custos muito baixos. Infelizmente, o nível de conscientização do potencial dessa “infraestrutura alternativa” é baixo na maioria dos países em desenvolvimento; e quando há alguma consciência nesse sentido, a operadora de energia não entende bem a dinâmica do mercado de telecomunicações e resolve cobrar quantias exorbitantes só para fornecer acesso.
Dispositivos de acesso a custos baixos. Os grupos de baixa renda ficam particularmente impedidos de pagar os preços dos equipamentos necessários para exercer o acesso em todo o seu potencial. Um acesso melhor para essas comunidades talvez só seja possível se forem adotados esquemas de financiamento público com empréstimos ou garantias a juros baixos, e também se forem minimizadas as alíquotas de importação de equipamento.
Suporte público para estender a conectividade a áreas rurais e remotas. O uso de fundos de universalização de acesso, que tiram uma parcela das receitas das operadoras existentes para respaldar a implantação de redes em áreas carentes, tornou-se um veículo aceitável. Entretanto, poucos foram os exemplos de boas práticas nessa área. Um dos bons exemplos encontra-se em um país desenvolvido, a França, onde as operadoras devem apresentar uma cotação mediante qualquer solicitação de serviço em qualquer lugar do país. A entidade reguladora deduz o custo médio nacional de fornecimento da conexão (determinado por parâmetros da própria reguladora) e dá a diferença à operadora, que deverá instalar a conexão no prazo especificado. Outro mecanismo que se usa naquele país é o leilão reverso para a prestação do serviço nas áreas carentes. É necessário providenciar acesso público para aqueles que não têm como arcar com os custos do acesso em casa ou no trabalho. Isso normalmente é feito montando bibliotecas e centros comunitários que disponham dos equipamentos necessários.
Sistemas de pagamento online. Se não houver sistemas de pagamento eletrônico para os que não contam com serviços bancários, os habitantes das áreas rurais não poderão aproveitar uma das características mais visadas da Internet: o e-comércio. Infelizmente, a maioria dos sistemas de pagamento adotados até o momento requer redes móveis: é necessário dispor de alternativas.
Desenvolvimento de conteúdo local. É necessário suporte para o desenvolvimento de aplicativos locais capazes de maximizar a demanda por redes, para serviços de e-governo e iniciativas locais.
Proteção efetiva ao consumidor. Para reduzir os riscos envolvidos no acesso à Internet, é necessária uma proteção efetiva contra aspectos tais como spam, fraude e manifestações de ódio, especialmente contra as mulheres e as minorias.
Melhores políticas para as energias renováveis e para a distribuição de eletricidade. A dinâmica da energia está cada vez mais ligada à conectividade com a Internet, em vários níveis. O impacto que o fornecimento e os custos da energia têm sobre o acesso à Internet é um assunto que as comunidades carentes reconhecem muito bem, pois muitas delas sofrem com os altos preços da energia e com a má qualidade do abastecimento – quando há abastecimento. Constam nessa categoria, inclusive, capitais e outras áreas urbanas de grande porte nos vários países em desenvolvimento. Essas restrições energéticas não apenas afetam os usuários finais que precisam da energia para fazer seus dispositivos de acesso funcionarem bem como também causam um profundo impacto nos custos com os quais as operadoras precisam arcar para implantar e manter suas redes. Uma das razões para os custos do acesso móvel serem tão altos em muitos países em desenvolvimento é a necessidade de instalar geradores para as estações rádio base e de gerir toda uma cadeia de fornecimento para mantê-los abastecidos com óleo diesel, normalmente em terrenos distantes e acidentados. Mesmo quando há energia, as operadoras não podem contar com ela e os custos de capital para implantar suas redes são altos demais, inclusive para instalar uma infraestrutura de respaldo que só raramente será usada. Felizmente, surgem cada vez mais opções de energias renováveis para alimentar as operadoras de redes e os equipamentos dos usuários finais, especialmente nos países que adotaram políticas de incentivo a produtores de energia independentes. Essas políticas permitem que qualquer usina de geração de energias renováveis compense seus custos vendendo de volta para a rede o excedente de energia gerada. Estão surgindo também alguns modelos novos de abastecimento energético nas comunidades carentes. Em muitos países em desenvolvimento, já existem quiosques de energia, onde as pessoas pagam para recarregar seus telefones celulares em baterias de automóvel ou painéis solares adaptados. As redes de distribuição de energia (torres de alta voltagem, postes de distribuição local de energia e oleodutos/gasodutos) são um recurso fundamental para minimizar o custo de implantação de uma espinha dorsal de fibra óptica.
1. Ver http://www.itu.int/en/ITU-D/Statistics/Documents/facts/ICTFactsFigures2013.pdf
2. Sobre as tecnologias de aproveitamento dos “espaços em branco” dos canais de TV conhecida como TVWS, veja o texto de Steve Song em https://politics.org.br/edicoes/espectro-e-desenvolvimento
3. Normalmente chamado de “dividendo digital”.